A máscara de Narciso

Fala-se da melancolia como um novo mal do século, mas ela é tão antiga quanto o próprio homem. Pode-se dizer que o que nos inaugura, em termos simbólicos, é a tristeza consequente à “primeira transgressão”. Essa tristeza nos estrutura e nos reinventa.

Sucumbimos ao apetite pelo fruto proibido e em troca ganhamos o arrependimento, o selo de nostalgia que nos faz encarar continuamente a face do abismo, o outro lado de nós mesmos, a sombra da morte (contra a qual se recorta a vida em seu provisório esplendor).

Perder é o nosso destino e em nenhum momento nos alheamos disso. Vestimos os disfarces da alegria mas somos substancialmente tristes, herdeiros de Belerofonte, o patrono da grei dos melancólicos na cultura ocidental. Ele teve a ousadia de desafiar os deuses e acabou ficando sozinho, “cantando sobre os ossos do caminho/ a poesia de tudo quanto é morto” – conforme dirá séculos depois Augusto dos Anjos.    

Aristóteles destacou o refinamento perceptivo do melancólico, que teria mais aptidão do que os outros homens para as atividades do pensamento e da arte. O que o acomete é um desequilíbrio humoral (discrasia); nele o humor negro (melaina kole) prepondera sobre os outros humores. Mas, para o estagirita, ser dosadamente triste é vantajoso.

Foram os românticos que descobriram (e valorizaram) o charme da melancolia. Com eles a tristeza e o tédio viraram pose e se transformaram numa escolha de vida (e também de morte). Divinizavam a mulher para colocá-la fora do seu alcance. Embora dessem a entender o contrário, eles fugiam do prazer erótico, ao qual se associava a angústia decorrente do sentimento de culpa. O amor romântico era uma maldisfarçada vitória de Tanatos.

Veio a modernidade e, com ela, Freud. Entre as muitas intuições que teve o mestre vienense, destaca-se a de que o melancólico está de luto. Tão simples, mas só ele viu. Ou, se outros também viram, foi ele quem melhor formulou a ideia da melancolia como resultante de um luto por si mesmo (uma defecção do ser, como diz Julia Kristeva em “Sol negro”).

O mecanismo é distinto do que ocorre no luto normal: ao perder o objeto (que pode ser uma pessoa, um ideal, um valor), o sujeito se identifica com ele. E passa a tratar a si mesmo com o ressentimento que deveria ser destinado a quem o abandonou. Desprezado, o sujeito julga que não merece o afeto ou o interesse de ninguém. Perde a autoestima e se abisma numa tristeza que pode culminar no suicídio – uma forma de matar, enfim, esse outro cuja sombra caiu sobre ele.

Seja na perspectiva da teologia, seja na da filosofia ou na da psicanálise,  que vê o melancólico como vítima de um jogo de forças no qual o objeto triunfa sobre o eu, ressalta-se a concepção da melancolia como uma crise do indivíduo, da subjetividade, enfim, do próprio ser. Mas é ela que orienta a nossa busca para um absoluto que desejamos, fantasiamos, e que também está em nós. Para além da máscara escura de Narciso.

Publicado por Chico Viana

Chico Viana (Francisco José Gomes Correia) é professor aposentado da UFPB e doutor em Teoria da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em sua tese, publicada com o título de O evangelho da podridão; culpa e melancolia em Augusto dos Anjos, aborda a obra do paraibano com o apoio da psicanálise. Orientou cerca de 37 trabalhos acadêmicos, entre iniciação científica, mestrado e doutorado, e foi por dez anos pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). Desde muito jovem começou a escrever nos jornais de João Pessoa, havendo mantido coluna semanal em A União e O Norte. Publicou cinco livros de crônicas.

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